quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Traga-me para a vida

Passos leve na nevoa, o som oco do pisotear das pedras, totalmente imperceptível, contrastando com o ar sombrio da estrada enevoada, num dia qualquer em uma época impossível de lembrar.
O homem sentado à sela do cavalo, portando sua armadura que em algum evento passado poderia ter sido prateada e dotada de uma beleza incomparável, mas que agora somente era cinza, mortiço e frio como o clima e o coração do cavaleiro. Ate mesmo sua montaria era deprimente de se encarar, ambos, homem e animal tinham um aspecto por fora que indicava seu espírito por dentro.
A espada, que por anos a fio fora a fortaleza dura contra o mal, jazia guardada em sua bainha de couro, seu brilho glorioso já á muito se apagara, a muito ela não se usara para representar o bem contra atos vis, o braço que deveria sustentar seu peso, perdera sua fé no bem, perdera tudo que lhe bastava para empunhá-la.
E essa era figura que cavalgava a passos lerdos em meio à neblina da estrada, o animal algumas vezes bufava inquieto, o homem estendia sua mão e a passava de leve no pescoço do companheiro tentando acalma-lo, mas seu toque apenas inquietava o velho eqüino.
Isso o fazia fitar suas próprias mãos, ate mesmo de passar amor ele se encontrava incapaz agora, só lhe restava viajar, espiar sua dor e culpa, por mais que se acha que jamais faria um ato bom novamente, da mesma forma como sua espada jamais cortaria o mal com o mesmo animo e seu escudo também não rebateria as setas e laminas adversárias.
Assim foi seu vagar, ate que chegou a um lugar tão perdido quanto ele, no meio de seus passos, surgiu uma porta grande de ferro, uma porta dupla e com múltiplos detalhes, em outras eras poderia ter sido bonita, mas o tempo lhe pesava de forma visível.
O cavaleiro entendeu que ali poderia haver algo para ele, fitou a entrada como se ela fosse se abrir e lhe expor seus segredos, havia um muro grande para o qual o portão servia de entrada, podia ver arvores do outro lado, arvores grandes e floridas, mas de um aspecto frio, tudo cinza, como a visão e os sentimentos do peregrino.
Ele desceu de sua montaria e se aproximou, tocou na tranca que se encontrava sem cadeado, não havia nada que o impedi-se de empurrar e penetrar no jardim do outro lado, seu instinto como antigo herói de andanças lhe dizia que aquilo nem sempre era o certo, muitos de seus companheiros já haviam sucumbido a armadilhas semelhantes, arquitetadas pelas mais cruéis e vastas mentes malignas, forças além da capacidade de amar, no entanto ele ainda sim abriu o portão.
Como ele sabia que aconteceria, a passagem se abriu para ele, a porta de metal rangeu de uma forma triste e se abriu, deixando uma fresta o suficiente para que ele penetra-se nos domínios, nem mesmo sacou de sua espada que já não desejava mais empunhar, entrou e caminhou pela grama, observando os detalhes mínimos.
O cavaleiro não desejava decorar ou aprender sobre as coisas dali, por que ele sabia que já as conhecia, já havia visto aquelas arvores, conhecia perfeitamente os frutos que davam e o gosto que tinham, sabia de tudo isso, assim como sabia que haveria uma pequena e bem cuidada trilha de pedras logo após a entrada, uma trilha que ele seguiu devagar, pisando parte por parte como se não caminha-se, mas como se aprecia-se.
Ele também sabia com perfeição, que seus passos o conduziriam a uma fonte, que talvez fosse decorativa a tempos atrás, mas era fria, sua água estava estagnada, e pequenas plantas cresciam em seu interior, aquilo tocou o coração do cavaleiro que se sentiu levemente triste pelo descaso, arrancou algumas de forma cuidadosa, mas não a limpou totalmente por que dentro de si, mais fundo ainda, ele também sabia que não era ali que ele queria parar de redescobrir.
Cruzou o jardim todo, o som de sua armadura rangendo, parecia deslocado dentro do local, ele sentiu que aquilo não fora feito para coisas que lembrassem batalhas, apenas para coisas doces, manhas e tardes lindas sentado sobre as arvores, acompanhado da pessoa amada, rindo, conversando, cantando, então noites poéticas admirando as estrelas, que tornavam as arvores uma visão ainda mais linda, cobrindo-as com seu manto negro e pontilhado de brilhantes.
Parou a porta do castelo no fim do jardim, dessa vez a passagem não se encontrava fechada para ele nem ninguém, as portas duplas estavam abertas, aquilo o deixou apreensivo, havia algo lindo e inocente, doce e puro ali dentro, simplesmente perfeito demais para ficar sem qualquer proteção.
Passou pela porta e teve o cuidado de fecha-la, para se deparar com o salão do castelo, como tudo antes naquele local, parecia inspirar grandeza e felicidade, mas agora parecia que um véu cinza de dor, lembranças amargas e principalmente uma solidão inexplicável, se abatera totalmente ali.
O cavaleiro entendeu então que aquele lugar estava assim, por que há muito tempo, algo que era muito importante para que a felicidade se mantive-se sempre presente ali, havia partido, deixado para trás a pureza daquele santuário, por algum motivo adverso e desconhecido.
Ele caminhou pelos cômodos do lugar, todos há muito aparentando um abandono triste, o cavaleiro sentia que a solidão e tristeza daquele lugar estava se impregnando nele, grudando em sua armadura, em suas armas, em sua alma, pequenos fragmentos de lamentos e choros, corridas desesperadas ao portão, esperando uma volta que parecia fadada a jamais ocorrer, uma eterna espera dolorida.
Na imensa cozinha do local, o cavaleiro andante soube onde matar sua sede bebeu um pouco de água, mas simplesmente por beber, não era aquele ato que lhe inquietava a alma, ele sabia o que era, sabia que toda a água do mundo não mudaria o que sentia por dentro que era o único e irreversível desejo de tentar entender como ajudar aquele lugar, como transformar os gemidos em risos e as lagrimas em beijos.
E como ele sempre soubera desde o inicio de tudo, o cavaleiro também tinha conhecimento de que a resposta para tudo aquilo acabar e algo novo recomeçar estava em um só lugar, no quarto do andar de cima, um quarto em que algo jazia esperando.
Sim era ali que ele deveria penetrar, o cavaleiro deixou a cozinha, pela primeira vez reparava que seus passos faziam um eco triste no chão de pedra, um som metálico que não combinava com nada ali, por que tudo ali fora feito para amor, então o cavaleiro se despojou de sua armadura, deixou-a no chão do salão principal, a espada e o escudo com um símbolo de um leão dourado, mas que para ele já parecia desbotado e frágil, sem gloria ou beleza, colocou tudo empilhado próxima à porta principal, e em anos ele nunca se sentiu tão leve, não de corpo, mas de alma.
Ele então subiu as escadas, degrau por degrau, passo a passo e ele sentia o coração acelerar e sentia a volta de velhos sentimentos que antes ele parecia desconhecer, que antes não pareciam fazer parte de seu coração endurecido pelo calor das batalhas e forjado com a gloria dos golpes e gritos, era assim que se moldava um soldado, um guerreiro, mas ele sabia que não era assim que se forjava um herói, deveria haver algo mais alem de combates e vitórias, e ele sabia que não era um herói por que o que lhe faltava para isso ele não trouxera consigo, e quando entendeu, abandonou sua vida de embates e partiu por que sentiu que acharia isso longe de tudo aquilo.
Os degraus intermináveis acabaram, agora ele via a porta, onde o maior dos segredos estava escondido, onde a única coisa que devolveria luz ao seu mundo cinza estava, o ingrediente que faltaria para ele ser um herói completo, para sentir que sua honra estava para sempre preservada.
Sabia que não deveria ter deixado seus aparatos para trás, mas também sabia que eles de nada lhe serviriam dentro daquele local, ali não havia perigo, ali não havia dor, ali não havia o mal, havia apenas respostas e então recomeço.
E foi com esses pensamentos, que ele abriu a porta, empurrou simplesmente por que sabia que ela estava destrancada, por que sabia que todas as outras também estariam, por que sabia de tudo sobre aquele lugar que parecia esquecido pelas coisas boas, sabia por que fora assim que ele deixara tudo antes de partir.
Na cama do quarto estava sua lady, seu rosto belo e os longos cabelos negros como a noite caindo pelo ombro, os olhos eram como os leitos de um lago profundo, os lábios vermelhos se abriram num sorriso belo, e o corpo se ergueu, coberto por um fino e frágil vestido branco, ela abriu os braços e veio em seu encontro, como um anjo em um livro, ela caminhou e parecia flutuar.
E o mundo começou a brilhar novamente, o castelo deixou de ser cinza, as arvores ganharam cor, os pássaros começaram a cantar de forma feliz e barulhenta nos jardins e a água estagnada da fonte se tornou cristalina, os corpos se tocaram e o mundo se curou para ambos, seus corações já não tinham mais o peso da dor, da saudade ou da solidão que por muito tempo se abatera e tirara a cor do mundo, tanto na beleza angelical da dama, quanto no gloria guerreiro do soldado.
Por que o cavaleiro voltara para casa.

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